domingo, 5 de outubro de 2008

Visão


Caminho ao sabor do vento, procurando um lugar familiar. Já esqueci há quanto tempo saltei do comboio, deixando metade da bagagem para trás. Agora caminho no deserto, iludida por miragens... Vejo-te, sinto-te perto, mas são apenas momentos fugazes, tão fugazes que, na loucura da sede e da solidão, não sei se são reais. À noite, no escuro, chamo por ti, mas tu não me ouves, não vens.

Serei invisível? Não consigo fazer-me ver. Tu não me vês, não com olhos de ver, não como eu queria, não como eu te vejo. Quando te vejo não vejo mais nada, não há mais nada, nem mais nada interessa. Vejo-te a ti, só a ti, mas não consigo ver além das tuas barreiras. Por mais que te tente ver, por mais que abra o coração, para me veres, para te deixar entrar, não consigo trepar esse muro. Conforme vou desistindo de tentar, começo a ficar cega e a única coisa que consigo ver quando te vejo é a tua silhueta a fundir-se com a linha do horizonte.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

O coração



"O coração tem mais quartos do que uma casa de putas" António Lobo Antunes

O coração é enorme. Vive cá dentro o Skipper, esse cão que era uma pessoa, que já existia lá em casa quando nasci, que me guardava o berço, que tantas vezes deitou a cabeça no meu colo e chorou comigo. Vive cá dentro a avó Lucinda, avó da minha mãe, mãe da minha avó, que me enchia as almofadas de espuma para eu nao me sentar no chão, que me cantava canções que se vão perdendo com o tempo (Oh Malhão Malhão, que vida é a tua?), que brincava comigo às casinhas. Vive cá dentro o avô, que era mais meu pai do que meu avô, que me levava ao café e a andar de baloiço depois da escola, que me ajudava nos trabalhos de casa, que brincava comigo, que me levava ao colo e às cavalitas. Vive cá dentro o pai, que me ligava todos os dias à hora de jantar e falava naquele tom de voz que era só meu, que me vinha buscar aos Domingos, sempre cheio de serenidade e paciência na sua expressão enigmática. E vivem cá dentro todos aqueles que ainda posso visitar sem procurar no coração.

sábado, 16 de agosto de 2008

Uma bolsinha de camurça


Precisava de fugir. Queria esconder-me, em qualquer lugar, longe do que me é familiar, para me encontrar ou para me perder, para conseguir mudar. Não sei se me encontrei ou se me perdi, não sei sequer se consegui mudar o que quer que fosse, sei apenas que encontrei tudo o que procurava, para além de mim mesma. No lugar mais improvável, onde nunca pensei procurar, encontrei paz, encontrei tudo aquilo de que preciso para me sentir bem. Mas não pude ficar. Tudo o que vi e senti tive de guardar numa bolsinha de camurça, igual a uma que tinha quando era pequenina, que a minha mãe me deu e que eu levava para todo o lado, cheia de felicidade, a bolsinha, claro. Agora levo para todo o lado uma bolsinha de camurça imaginária, igual a uma que tive há muito tempo, para a abrir de vez em quando e saber que há um lugar para mim, onde sou eu, onde me sinto bem.

terça-feira, 24 de junho de 2008

Aprendendo


Às vezes, antes de adormecer, ainda fecho os olhos e imagino que estás aqui. Por momentos, pequenos e preciosos momentos, é como se estivesses mesmo e encho-me de calor, um calor que vem de dentro, do meu centro, do meu coração, não fosse o coração apenas um órgão, do lugar onde te guardo, seja ele onde for.

Aprendi com o tempo (e é tanto o tempo que já passou...) a não estar zangada contigo, a aceitar quem foste e tudo o que fizeste. Ainda há dias em que me zango contigo por não estares presente, mas lembro-me do lugar onde te guardei, dentro do meu ser, e penso que não poderias estar mais perto. Aprendi que não foi culpa tua o que me aconteceu. Foi culpa minha, é culpa minha, ter-me esquecido de quem sou, mas não ser capaz de esquecer quem tu querias que eu fosse, ou quem sabias que eu era.

Ainda tenho muito para aprender e, do lugar onde te guardei, dentro do meu ser, vais acompanhar-me em cada lição e vais ser sempre o meu professor preferido, a seguir ao avô, claro.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Reflexões



Costumava saber muitas coisas. Aliás, costumava pensar que sabia muitas coisas. Agora sei que não sei rigorosamente nada. Saber uma coisa já não é nada mau, pois não?

Ontem disseram-me uma coisa que me fez rir instantaneamente, mas pensar muito depois: "És tão instável que prevês as tuas próprias instabilidades". E sou. Quanto ao prever as minhas instabilidades, faço os possíveis, mas sou bastante instável e, inconscientemente, crio defesas em relação a isso. O que é verdade hoje pode ser mentira amanhã. Vivo de emoção forte em emoção forte, salto da dor profunda para a pura euforia, sem meio termo, não há meio termo. Apercebo-me disto e de como é disfuncional e destrutivo, mas não sei se sou capaz de mudar. Vens de mão dada comigo na mesma?